Confira, abaixo, o artigo do advogado-geral do Estado, Sérgio Pessoa de Paula Castro, publicado no site Conjur. (O link da página é: https://www.conjur.com.br/2024-dez-08/a-repactuacao-de-mariana-e-o-papel-da-advocacia-publica-na-efetivacao-de-direitos-fundamentais/)
“Em 5 de novembro de 2015, o rompimento da barragem de Fundão, localizada no Complexo Minerário de Germano, em Mariana (MG), desencadeou abalos ambientais, sociais e econômicos sem precedentes na bacia do rio Doce. No total, 56 milhões de metros cúbicos de rejeitos [1] assolaram dezenas de municípios mineiros e capixabas, alcançando áreas estuarinas, costeiras e marítimas do litoral do Espírito Santo, com 19 vítimas fatais. Estima-se que o desastre tenha afligido, direta ou indiretamente, ao menos 2,2 milhões de pessoas [2].
À época, o poder público encontrou na judicialização uma resposta imediata à tragédia. Ainda em 2015, a União, o estado de Minas Gerais e o estado do Espírito Santo propuseram ação civil pública (nº 0069758-61.2015.4.01.3400) contra as poluidoras direta (Samarco Mineração S.A.) e indiretas (Vale S.A. e BHP Billiton Brasil Ltda.). Pretendia-se que fossem adotadas medidas urgentes para a contenção de danos e que se apresentasse um plano global de recuperação socioambiental de toda a área degradada.
No exercício de suas atribuições constitucionais, a advocacia pública desempenhou papel de destacada relevância nos dias, meses e anos subsequentes ao rompimento. Em um primeiro momento, representando os entes afetados, patrocinou a aludida empreitada judicial — cuja importância não se pode questionar, sobretudo para a adoção de medidas de urgência. Todavia, com o passar do tempo, ante inúmeras vicissitudes e graças à consolidação de novos paradigmas, o protagonismo dos advogados públicos como catalisadores de soluções consensuais ganhou preeminência, em prestígio aos métodos adequados de solução de controvérsias, ao princípio da eficiência e, sem dúvidas, ao interesse público.
A advocacia pública, sabe-se, está elencada na Constituição como uma das funções essenciais à Justiça. Di Pietro elucida que, ao estabelecer essa classificação, o legislador constituinte teve a intenção de destacar a imprescindibilidade dessa carreira ao avanço da Justiça — que, segundo a doutrinadora, deve ser lida em dois sentidos complementares: 1) como sinônimo de Poder Judiciário; 2) como valor supremo de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos [3].
Os advogados públicos revelam, assim, um de seus mais significativos propósitos: o de que sejam conferidas resolutividade e contemporaneidade à efetivação dos direitos e garantias fundamentais, em prol de uma sociedade mais justa, solidária e fraterna. Nessa toada é que as soluções autocompositivas passaram a ser cogitadas e executadas no âmbito dos conflitos relacionados ao rompimento da barragem de Fundão, com vistas à definição de estratégias capazes de promover uma reparação integral de forma mais célere, abrangente e definitiva.
Com efeito, em um contexto marcado pelo incremento exponencial da litigiosidade e pela consequente incapacidade resolutiva da jurisdição, saídas consensuais têm ganhado evidência por sua efetividade, sobressaindo-se muitas vezes como as únicas medidas realmente hábeis a entregar às partes soluções definitivas e em tempo razoável.
Nesse sentido, a fim de eliminar a necessidade de incessantes idas e vindas judiciais, a atuação concertada entre o poder público e as empresas poluidoras, sob atenta orientação da advocacia pública, permitiu que fosse firmado, em 2016, o Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC). À ocasião, declarou-se que este teria por objetivo “pôr fim ao litígio por ato voluntário das partes, reconhecendo que a autocomposição é a forma mais célere e efetiva para resolução da controvérsia” [4].
O termo instituiu programas de natureza compensatória e reparatória e os colocou sob a gestão da Fundação Renova. Esta, como fundação de direito privado, não seria obrigada a licitar — o que, em tese, traria mais dinamicidade à execução dos programas. Criou-se, também, um Comitê Interfederativo (CIF), responsável por validar medidas apresentadas pela Renova e por fiscalizar seus resultados.
Embora muito bem concebido, esse modelo de governança logo se mostrou bastante burocrático. Questionamentos relativos às deliberações do CIF passaram a ser constantemente judicializados, o que trouxe uma morosidade inesperada à execução do TTAC.
Em 2018, cientes dessas dificuldades, as partes assinaram o chamado TAC Governança [5] no âmbito das Ações Civis Públicas nº 0023863-07.2016.4.01.3800, ajuizada pelo MPF, e nº 0069758-61.2015.4.01.3400, alhures mencionada. Por meio desse documento, buscou-se aprimorar a governança do TTAC, aperfeiçoar os mecanismos de participação dos atingidos e promover a renegociação dos programas em vigor.
No ano seguinte, a Advocacia-Geral do Estado de Minas Gerais se reuniu com o juiz da então 12ª Vara Federal Cível e Agrária da Seção Judiciária de Minas Gerais para que fosse ajustado um ritmo mais célere à recuperação das regiões degradadas, a fim de minimizar o sofrimento dos atingidos. O Juízo teve a iniciativa, então, de provocar o CNJ, com o intuito de que a renegociação continuasse em ambiente mais estruturado, haja vista a complexidade da situação.
Nessa direção, no Observatório Nacional sobre Questões Ambientais, Econômicas e Sociais de Alta Complexidade e Grande Impacto e Repercussão, coordenado pelo CNJ e pelo CNMP, firmou-se uma Carta de Premissas em junho de 2021, por meio da qual foi reconhecida a necessidade de uma ampla renegociação de tudo aquilo que já fora anteriormente pactuado, com o intuito de que pudessem ser traçadas estratégias hábeis a produzir, de forma mais célere, uma reparação integral e definitiva.
Forçoso destacar que a constatação da premência de uma ampla repactuação não significa que o consensualismo tenha falhado; ao revés, evidencia a necessidade de colaboração constante e persistente entre as partes envolvidas, especialmente em conflitos de tamanha complexidade.
As tratativas evoluíram entre a União, os estados de Minas Gerais e Espírito Santo, as instituições de Justiça e as empresas responsáveis, sob constante orientação de membros da advocacia pública incumbidos de representar e assessorar os entes envolvidos. Em 2023, instituiu-se no TRF da 6ª Região a Mesa de Repactuação [6], ambiente em que se promoveram reuniões destinadas a estabelecer novas diretrizes para uma reparação definitiva. Encabeçada pelo atual vice-presidente daquela corte, desembargador federal Ricardo Machado Rabelo, a mesa deu continuidade às tratativas iniciadas no CNJ por provocação da 12ª Vara Federal.
Ao cabo de muitos debates, inclusive em audiências públicas e rodadas temáticas de negociações no CNJ, foi finalmente celebrado o “Acordo Judicial para Reparação Integral e Definitiva relativa ao Rompimento da Barragem de Fundão” [7], assinado no dia 25 de novembro de 2024 e em seguida homologado pelo STF.
Extrai-se dos “considerandos” do novo acordo importante orientação no sentido de que a autocomposição seja “fundamentada no ordenamento jurídico, na observância do status quo ante, celeridade, proporcionalidade, razoabilidade, reparação integral e definitividade”. Nesse sentido, as partes resolveram “renegociar amplamente todas as medidas, programas, responsabilidades, obrigações e condutas transacionadas, ajustadas e pactuadas anteriormente (…) visando à reparação, recuperação, compensação e indenização integral e definitiva dos danos de qualquer natureza”.
Os adjetivos destacados no trecho acima ditam a tônica do novo pacto. O que se espera é que, ao cabo de sua execução, todo e qualquer dano resultante do rompimento seja remediado permanentemente, de modo que se possa atribuir um ponto final a controvérsias que já se arrastam por quase uma década.
O status quo ante, embora inalcançável — o que se reconhece expressamente nos “considerandos”, seja pela irreversibilidade de determinados danos ambientais, seja pela impossibilidade de compensação plena de certas ofensas de ordem extrapatrimonial —, é mencionado no novo acordo como uma espécie de arquétipo daquilo que se busca realizar.
Um dos pontos nodais da repactuação é a extinção de todas as ações judiciais, com resolução do mérito, e dos procedimentos administrativos relativos ao rompimento. Pretende-se que o tratamento dos conflitos deixe de ocorrer de forma fragmentada e passe a se concentrar nos novos mecanismos de reparação, recuperação, compensação e indenização, de modo mais eficiente e eficaz.
São previstas obrigações de pagar, cujos recursos serão administrados pelo poder público, e obrigações de fazer, a serem executadas pela Samarco. Para que os programas sejam implementados com mais eficiência, simplifica-se o processo de governança, com instâncias deliberativas separadas em cada ente político, de acordo com as especificidades, o interesse e o local de implementação.
Extinguem-se, pois, o CIF (cujo modelo de governança se mostrou moroso e ineficaz, como visto) e as obrigações oriundas dos “instrumentos fundantes” da Fundação Renova (TTAC, TAP, ATAP e TAC-GOV). Consequentemente, a própria Renova, em função da perda de seu objeto, será extinta, sendo seus programas, planos e ações substituídos pelas medidas previstas taxativamente nos anexos da repactuação.
Digna de menção é a atuação das instituições de Justiça na nova sistemática, que tem por marca a transversalidade. Além de cuidar da governança de diversas obrigações de fazer, essas instituições ficam responsáveis por encaminhar reivindicações sociais prioritárias às instâncias executoras e por gerir recursos destinados a alguns projetos e programas. Merece destaque o “Programa para Mulheres”, que destina recursos significativos a iniciativas em benefício das mulheres da região afetada pelo rompimento, em prestígio à equidade de gênero.
As auditorias das obrigações de fazer garantirão que elas sejam cumpridas a tempo e modo, mas não criarão entraves burocráticos desnecessários. Eventuais omissões ou atrasos de determinados relatórios, pareceres ou notas técnicas não poderão, em hipótese alguma, obstar o cumprimento dos prazos de entrega. Comprovada a atuação irregular de alguma auditoria, a empresa por ela responsável poderá ser substituída.
Reafirmando seu compromisso com a consensualidade e com a boa-fé objetiva, os agentes públicos vinculados aos entes signatários se abstêm de adotar uma postura contraditória ao acordo e de questionar a sua validade, a fim de que as dificuldades enfrentadas na execução dos pactos anteriores não se repitam. Comprometem-se, ainda, a cooperar com os órgãos do Poder Judiciário, visando sempre a definitividade na resolução de controvérsias.
Nessa toada, ao final, as partes reafirmam:
“Este ACORDO e suas disposições, bem como as obrigações e formas de cumprimento aqui pactuadas, não poderão ser modificadas, no todo ou em parte, por quaisquer atos praticados por e perante quaisquer outros juízos, salvo mediante consenso entre as PARTES.”
Como se vê, os signatários se atentaram à necessidade de que ações tangíveis e céleres fossem estabelecidas com objetividade, segurança jurídica e definitividade. É de se notar, ademais, que o pacto ostenta plena conformidade com a chamada Agenda 2030 das ONU: os programas nele previstos se alinham a vários dos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) estabelecidos na Agenda, sendo certo que a própria mobilização em prol de um novo consenso, iniciada nos idos de 2016, já vinha materializando os ODS 16 e 17, respectivamente resumidos em “paz, justiça e instituições eficazes” e “parcerias e meios de implementação” [8].
Mas o caminho até esse desfecho foi extremamente tortuoso. O novo acordo só foi possível graças à conformação das partes ao sistema multiportas, consolidado sob a égide da Política Judiciária Nacional de tratamento adequado de conflitos (instituída pela Resolução CNJ nº 125/2010) e do CPC de 2015. Não fossem as concessões mútuas, o empenho e a perseverança dos envolvidos, jamais se cogitaria de uma reparação integral e definitiva.
Evidentemente, as soluções encontradas não são perfeitas, dada a impossibilidade, como visto, de se restaurar inteiramente o status quo ante. Ideal seria que o rompimento não houvesse ocorrido, mas não nos é dado intervir no passado. Cabe-nos, agora, trabalhar para reparar o reparável — e ainda há muito trabalho pela frente. Até que todos os novos programas sejam implementados e concluídos, o que se espera é que a mentalidade consensualista que permeou o processo de renegociação continue sendo nutrida pelo poder público, pela Samarco, por suas acionistas e pelas comunidades atingidas.
Enquanto função essencial à Justiça, a advocacia pública desempenhou (e continua a desempenhar) papel de destaque nessa empreitada, atuando como peça-chave do concerto interinstitucional que propiciou a repactuação. No exercício de suas atribuições constitucionais, os advogados públicos, ombro a ombro com os membros das instituições de Justiça, concorreram para que se pudessem atribuir resolutividade e contemporaneidade à efetivação dos direitos fundamentais, com vistas à construção de uma sociedade tal qual a idealizada no preâmbulo da Constituição: fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida com a solução pacífica das controvérsias”.
[1] BRASIL. MPF. O desastre – Caso Samarco. Disponível em: https://www.mpf.mp.br/grandes-casos/caso-samarco/o-desastre. Acesso em: 31 out. 2024.
[2] FGV. Fundação Getulio Vargas. Os atingidos – conheça o perfil dos atingidos pelo desastre. Disponível em: https://projetoriodoce.fgv.br/perfil-dos-atingidos. Acesso em: 31 out. 2024.
[3] DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. A advocacia pública como função essencial à justiça. Consultor Jurídico. São Paulo, 18 ago. 2016. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2016-ago-18/interesse-publico-advocacia-publica-funcao-essencial-justica/. Acesso em: 02 nov. 2024.
[4] TERMO de Transação e Ajustamento de Conduta – TTAC. 02 mar. 2016. Disponível em: https://www.fundacaorenova.org/wp-content/uploads/2016/07/TTAC-FINAL-ASSINADO-PARA-ENCAMINHAMENTO-E-USO-GERAL.pdf. Acesso em: 13 nov. 2024.
[5] BRASIL. MPF. Dúvidas sobre o TAC Governança? Disponível em: https://www.mpf.mp.br/grandes-casos/caso-samarco/duvidas-sobre-o-tac-governanca. Acesso em: 11 nov. 2024.
[6] BRASIL. TRF6. Presidente do TRF6 visita Mesa de Repactuação sobre o rompimento da Barragem de Fundão. Disponível em: https://portal.trf6.jus.br/mesa-de-repactuacao/. Acesso em: 11 nov. 2024.
[7] ACORDO Judicial para Reparação Integral e Definitiva relativa ao Rompimento da Barragem de Fundão. 25 out. 2024. Disponível em: https://www.mg.gov.br/planejamento/documento/novo-acordo-de-mariana-versao-final-homologada-e-assinadapdf. Acesso em: 07 nov. 2024.
[8] ONU. Organização das Nações Unidas. Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Disponível em: https://brasil.un.org/pt-br/sdgs. Acesso em: 13 nov. 2024.
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